DÉCIMO TERCEIRO ACTO
O pedido de Fernando Grego e do seu amigo Rogélio a José Régio insere-se, como atrás ficou amplamente confirmado, numa regular e longa lista de solicitações semelhantes, recebidas pelo dramaturgo. O que este episódio terá de mais singular é a circunstância de ter partido de um pequeno grupo de jovens, nem sequer organizados como entidade dedicada ao teatro, escolar, experimental, muito menos profissional.
A carta subscrita por Fernando Grego deve ter surgido aos olhos e à sensibilidade, quer artísticos quer profissionais, do autor como uma lufada de crença nos recursos próprios, temperada por uma ingénua, mas sincera, força de vontade juvenil, da parte dos seus anónimos correspondentes. E Régio, seguramente por isso, acreditou nela e depositou confiança nos subscritores. Daí a resposta, pedagógica e estimulante, talvez mesmo cúmplice no sentido em que um velho e experimentado autor aceita o desafio e dá indicações seguras e concretas quanto aos passos seguintes. A própria reserva que coloca e que certamente nunca teria sido prevista pelos potenciais actores representa, ela própria, um desafio…
Fernando Grego, que já deu conta da surpresa e da emoção com que o grupo recebeu a resposta de José Régio, cumpriu a sugestão e terá ficado decepcionado por força do incontornável obstáculo imposto pelas restrições políticas à representação da obra regiana. Na resposta, célere, que enviaram a José Régio, ficou isso bem patente.
A correspondência trocada -a carta original, enviada a Régio por Fernando Grego e Rogélio Gomes em 19 de Julho de 1965; a resposta do dramaturgo em 23 desse mês (quatro dias depois!); a carta final dos jovens, datada de 5 de Agosto- revela um exemplar diálogo, travado a um nível de grande elevação tanto na forma como no conteúdo.
É sincera e cativante a justificação dos motivos pelos quais o grupo de rapazes de Cascais decidiu escolher O Meu Caso, no interessante confronto com o teatro vicentino, assim como a convincente descrição da sua colectiva atracção pelos palcos. José Régio, amante e praticante do diálogo entre os homens, não ficou indiferente perante a sinceridade patente na carta.
Fernando Grego é, pelas mesmas razões, um justo co-autor do despretencioso título da série de textos agora aqui disponibilizada. Este é, de facto e se me for permitida uma (abusiva) partilha pessoal, O NOSSO CASO.
Resta revelar o conteúdo das três cartas, assim se encerrando a série. Eis a primeira, que iniciou o curto e significativo diálogo epistolar:
Cascais, 19 de Julho de 1965
Exmo. Senhor
Não nos conhece. Porém, não é isso entrave, pois que, com a devida consideração, nos passamos a apresentar: Somos dois rapazes. Trabalhamos e estudamos. Gozamos agora as férias dos estudos.
Dito isto apenas, poderá parecer-lhe descabido porque nos dirigimos a V. Exa. Mas justificamos: é que amamos a Arte, e muito especialmente o teatro.
E agora, feita a nossa apresentação, um tanto ou quanto teatral, fazemos uso para dizer qual a razão desta carta.
Pensamos nós, nestas férias, dar forma a um sonho muito antigo: a criação dum grupo teatral. Reconhecemos ser o tempo de que dispomos muito pouco, e ainda que saibamos tê-lo limitado e até ao princípio de Outubro, juntamos um grupo de rapazes e propusemo-nos fazer representar na vila de Cascais, de onde quase todos somos naturais, autores portugueses; um clássico e um moderno. Dos clássicos escolhemos Gil Vicente, até porque celebramos o centenário do seu nascimento, e dos modernos, depois de muitas peças que lemos, vimos a possibilidade numa escrita por V. Exa. : “O MEU CASO”. O seu conteúdo humano atraiu-nos. Duma maneira simples, numa trama que pode parecer a um espírito menos subtil ser convencionalíssimo, existe um grito universal e intemporal da condição de homens. Ao lado da força do teatro Vicentino, “O MEU CASO” tem, o que é interessante, um idêntico poder crítico e uma forma técnica assaz semelhante. Conhecedores do alto espírito pedagógico de V. Exa. e do grande amor que nutre pela Arte, agradecíamos imenso que nos autorizasse a representação da referida peça. Somos puros amadores. Corremos atrás dum ideal de verdadeira felicidade que o pisar de um palco nos dá. Preferimos a umas férias de descanso, umas outras de recreio espiritual, lutando, humildemente, por uma juventude mais lúcida. Este é O NOSSO CASO.
Esperando a melhor atenção de V. Exa., desde já convidamo-lo para assistir à primeira representação (depois diremos qual é a data exacta) e despedimo-nos, aguardando resposta, com os mais respeitosos cumprimentos de
Fernando José das Neves Grego
Rogélio Mena Gomes