Como cresce uma cidade – seis (fim)

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PORTALEGRE – como cresce uma cidade – 6

 

A cultura não é só o que eleva e emancipa, é também o seu contrário; não é apenas nobre, é também ignóbil. E talvez seja tarefa mais necessária defendê-la da proposição de conformidade dos que acham que ela é tudo do que da malvadez dos que entendem que ela é nada”.

 

António Guerreiro, Ah, a cultura!

 in ípsilon, Público, 29 de Novembro de 2013

 

Convém estar sempre precavido em relação ao que António Guerreiro, com inteira justeza, assinala. A cultura é handicap e alibi, é justificação e desculpa, é aposta ou desprezo. Agora, em tempos de crise, é muitas vezes catalogada na relação das dispensáveis prioridades.

Em Portugal, a crise remeteu a Cultura para um gueto, reduzindo oficialmente a sua importância,  despromovendo um ministério a simples secretaria de Estado, nomeando para seus titulares figuras de segundo ou terceiro plano. Assim, o Governo retirou à Cultura peso, representatividade e capacidade de afirmação no núcleo duro das superiores decisões. Todos temos assistido aos efeitos desta medida.

É a crise, pois, que tem as costas largas…

Talvez seja bom lembrar o que fez a Irlanda, país nosso ex-parceiro na desgraça da crise. Precisamente o contrário. Nos seus governos, sempre existira a tradição de uma secretaria de Estado na gestão dos assuntos culturais. Pois nesta emergência promoveram-na a Ministério, entregando-o a uma personalidade de reconhecida competência, para além de terem sido nomeados embaixadores culturais e de ter sido dirigida aos criadores e agentes da área um expresso pedido para que não abandonassem o país, porque este precisaria deles e do seu talento para ser conseguida a desejada recuperação. Enfim, e em resumo, a Irlanda concedeu à Cultura uma importância estratégica. Como é óbvio, não foi esta, apenas, que conseguiu o êxito colectivo, mas ninguém poderá recusar-lhe uma activa e efectiva participação nos resultados positivos da recuperação nacional irlandesa.

A Cultura, que já foi -também entre nós- uma decisiva arma de resistência cívica, pode ser agora um importante instrumento de luta contra a crise. Na França, as indústrias culturais geram hoje cerca de um milhão de postos de trabalho, presentemente mais do que os abrangidos pela indústria automóvel.

O que é válido para um país é, neste caso, igualmente aplicável à vida de qualquer outra comunidade, aldeia, vila ou cidade. Estas crescem, paralisam ou estiolam ao sabor de diversos factores, entre os quais -e na primeira linha- se conta a Cultura.

Citei há pouco o exemplo de Atouguia da Baleia, que me fica perto. Mas Portalegre também dispõe de modelos próximos. Por exemplo Elvas, que fez da Cultura um decisivo motor de desenvolvimento. A recente qualificação, ao mais alto nível, de uma parte do seu património construído é o resultado de uma aposta sólida e persistente na inteligente exploração dos recursos locais. Em Portalegre, estes são vandalizados…

E a cidade raiana também dispõe de outros pólos de valorização interna e de atracção externa, como os museus militares, de arte contemporânea e de fotografia, enquanto se ultima o de arqueologia.

Estremoz, para além do municipal Prof. Joaquim Vermelho, dispõe de outros museus dedicados à arte sacra, à ruralidade e ao passado militar, preparando o ferroviário.

Em Évora, as mostras permanentes de megalitismo, de carruagens antigas e de arte sacra completam o riquíssimo espólio do Museu da Cidade, que vem dos tempos de Frei Manuel do Cenáculo, aí arcebispo nos inícios do séc. XIX.

Um recente texto de Isabel Salema (ípsilon, Público, 13 de Dezembro de 2013) intitula-se Hello Évora e começa assim: “Um centro cultural que propõe inscrever Évora nos circuitos internacionais das artes plásticas. Outro que quer levar a arte contemporânea a Castelo Branco. Um ícone vermelho em Miranda do Corvo. Três propostas culturais no interior do país abrem as portas contra a crise”.

O antigo Palácio da Inquisição eborense, numa adaptação muito bem concretizada pelo portalegrense Fernando Sequeira Mendes (outro laureado arquitecto lagóia!), é um novo fórum cultural da cidade, numa iniciativa da Fundação Eugénio de Almeida. Os estatutos desta instituição obrigam-na a contribuir para o desenvolvimento local da cidade e os responsáveis escolheram agora a Cultura como um seu privilegiado instrumento. Sem mais comentários.

A jornalista Vanessa Rato, assinando a crónica Castelo Branco a meio caminho entre Lisboa e Madrid [e julgava eu que era Portalegre!], começa por dizer: “Castelo Branco tem 39 mil habitantes e, agora, um Centro de Cultura Contemporânea em cuja construção de raiz a autarquia investiu seis milhões de euros. É parte de um plano de revitalização do centro histórico, antes abandonado. Uma cidade é como um país, não se muda num dia, mas vai-se mudando, dizem os responsáveis pelo projecto”. Veio-me à lembrança, outra vez, o antigo solar filipino que alojou durante séculos a autarquia portalegrense num centro histórico também abandonado, e fico sem qualquer ânimo para prosseguir.

Não sei se é preciso mais algum argumento, ou razão, para defender a imperiosa e urgente necessidade de Portalegre acordar da letargia cultural em que há muito mergulhou. E não se diga que é o ocasional lançamento de um livro, uma fugaz exposição, um simples encontro a pretexto de um qualquer tema, poesia, canto ou conferência por exemplo sobre o escaravelho da batata e o seu papel na dieta mediterrânica, que alteram o comatoso estado das coisas culturais lagóias.

A comunidade cresce ou mingua conforme se alimenta, ganha sentido para a vida futura ou atracção pelo suicídio em função dos estímulos energéticos que recebe. E a cultura, mais do que o betão, tem de fazer parte da sua ração alimentar, no quotidiano, como salutar hábito dietético.

Acordem e mexam-se, porra!

 

António Martinó de Azevedo Coutinho

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