No âmbito da vastíssima e diversificada criação de José Régio, romancista, ensaísta, contista, poeta, crítico literário, teatral e cinematográfico, dramaturgo, cronista, novelista, teorizador pedagógico, desenhador, ilustrador e pintor, prefaciador, articulista, etc., no seio da vastíssima produção regiana, onde ainda faltaria mencionar, por exemplo, a valiosa correspondência e as fabulosas colecções artísticas -erudita e popular- que juntou para nos legar, entre todo esse fantástico universo, como situar uma peça isolada, quase “insignificante”, como um romance, por acaso o seu primeiro romance?
Este é um dos propósitos que visarei, na tentativa de compreender e partilhar testemunhos arrolados a tal pretexto. Tenho consciência de que a tarefa fica limitada aos escassos recursos de que disponho, aqui e agora, longe das fontes fundamentais que poderiam fazer mais luz no presente caso. Mesmo assim, atrevo-me a tanto…
Como foi avaliado Jogo da Cabra Cega, quer pelos seus leitores quer pelo próprio autor?
Comecemos pelos comentários alheios, dos quais seleccionei e organizei cronologicamente os que me pareceram mais significativos.
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Páro por aqui, por que me apeteceria não acabar. Não toco nos motivos por que o seu livro [Jogo da Cabra Cega] não é inteiramente romance. V. conhece-os. O seu livro, aliás, não sendo romance, é muito mais. E não sei porque me surge como uma dessas mensagens de cumeeira: umas Confissões de Sto. Agostinho, ou assim. De censurável (e até de fastidioso) só certas páginas em que Serra contracena com os rapazes do Grupo e não se sabe por que motivo -social e lógico motivo- se zangam, formalizam, melindram ou amuam. Confesso que aí cheguei muitas vezes a enfadar-me e a amarrotar as páginas, furioso consigo… Mas saio do Jogo da Cabra Cega com uma impressão decididamente forte, muitas vezes empolgada, – e (deixe-me dizer-lhe) com uma sensação de pequenez minha, da mediocridade dos meus meios, que oxalá o seu exemplo, tornado estímulo, ajude a transformar nalguma coisa de melhor.
Carta de Vitorino Nemésio a José Régio, datada de Montpellier, 25 de Novembro de 1934, e publicada por Eugénio Lisboa no n.° 81 de Colóquio/Letras, de Setembro de 1984.
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Eis como um dos mais severo críticos de Eça de Queirós -José Régio- veio a ser, anos depois, o autor de um dos primeiros romances portugueses emancipados da influência dele. Jogo da Cabra Cega, esse extraordinário romance que uma fatalidade condenou ao anonimato, é, entre nós, um dos primeiros livros de ficção publicados sob o signo do romancista que a nova crítica considerava mestre do romance – Dostoievski.
João Gaspar Simões, in Caderno de Um Romancista, Liv.a Popular de F. Franco, Lisboa, 1942.
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Eis, sob o ponto de vista restritivo que desde o começo adoptei, as características que se me afiguram essenciais do Jogo da Cabra Cega. Suponho deixar suficientemente indicada a categoria espiritual de uma obra que é impossível ler passivamente, sem que se tome parte no drama. Romance, está a uma enorme distância -não ponho o problema da qualidade- das obras desse género anteriormente aparecidas em Portugal. Com efeito, todo o nosso romance tem revelado até aos nossos dias profunda repugnância pela investigação do homem num plano que não seja o da aparência imediata. E a importância do aprofundamento do homem como ser que sente, pensa e deseja, pareceu-me mais urgente pô-la em destaque do que estudar quaisquer outros aspectos deste romance. Esse basta para dar a esta obra uma excepcional importância na nossa literatura.
Adolfo Casais Monteiro, in O Romance e os Seus Problemas, Liv.a Editora da Casa do Estudante do Brasil, Lisboa, 1950.
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Jogo da Cabra Cega, um dos maiores romances portugueses de todos os tempos -obra em que Régio centrou todos os seus dons de poeta, psicólogo, dramaturgo, pensador e crítico, conjugando-os com densidade excepcional.
Mário Sacramento, in Diário de Lisboa, 24 de Março de 1966.
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Jogo da Cabra Cega, enquanto livro especulativo tentando construir uma metafísica capaz de explicar os meandros psíquicos de algumas personagens, é dotado de escasso poder de convicção. Melhor: trinta anos depois nota-se o ultrapassado dessas especulações que já nasceram velhas e um tanto ambiciosas. Esforço talvez um tanto inglório de Régio.
Mas o livro convence-nos plenamente nos planos não especulativos. Extraordinário nos parece, por exemplo, o retrato de ambiente da pensão da D. Felícia; e o da própria D. Felícia, e o que se reporta aos acontecimentos imprevistos que envolvem esta personagem. Como muito vivo nos parece quase tudo o que de quotidianamente observado pôde Régio facultar-nos.
Alexandre Pinheiro Torres, in Romance: o Mundo em Equação, Portugália Editora, Lisboa, 1967.
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Os testemunhos continuarão…
António Martinó de Azevedo Coutinho