As Pinturas do meu Irmão Júlio

Seria redundante lembrar aqui, com dispensáveis pormenores, o que foi a fraterna e cúmplice amizade entre dois homens de invulgar cultura: José Régio e Manoel de Oliveira.

Nascido a partir duma sábia crítica do primeiro à curta-metragem Douro Faina Fluvial (presença n.º 33, Junho-Outubro de 1931), o encontro entre eles proporcionaria aquilo que o ensaísta António Preto considerou como “um dos acontecimentos mais profícuos e determinantes do percurso dos dois autores, em toda a reciprocidade.”

Em 1963, o documentário Acto da Primavera intensificou o entendimento entre Oliveira (realizador) e Régio (consultor literário e cultural).

Seguir-se-ia um novo capítulo nesta aliança, através da interpretação fílmica de temas proporcionados pelo autor da Toada. Pode citar-se As Pinturas do meu Irmão Júlio (1965), Benilde ou a Virgem-Mãe (1975), O meu Caso (1987), O Quinto Império – Ontem como Hoje (2004), O Poeta Doido, O Vitral e a Santa Morta (2008, mas iniciado em 1965) e A Vida e a Morte – Romance de Vila do Conde (2008, mas igualmente iniciado em 1965).

Manoel de Oliveira, cuja fabulosa sobrevivência criativa se mantém, nunca esqueceu o seu amigo José Régio, embora o tenha perdido fisicamente em 1969. Ainda há poucos anos, em notável entrevista pública, ele dizia sobre Régio que “a verdadeira originalidade está na personalidade de cada artista.” E lembrava que, embora o poeta estivesse “um bocado esquecido… ele virá…”

 

Pretendo hoje recordar aqui uma obra praticamente desconhecida de Manoel de Oliveira, que junta José Régio e o seu irmão Júlio, pintor e poeta (Saul Dias).

Trata-se precisamente da curta-metragem As Pinturas do meu Irmão Júlio, datada de 1965. Esta obra, que nunca teve qualquer estreia comercial, foi recentemente recuperada por meio de tecnologia digital, assim saindo do limbo do esquecimento onde permaneceu durante muitas décadas.

O texto, curto e sincopado, é da autoria do próprio Régio, ao tempo vivendo em Vila do Conde, donde o irmão Júlio estava ausente. A memória deste é feita através das pinturas que povoam a velha casa minhota de ambos.

Manoel de Oliveira filma tal sentimento por intermédio desse universo pictórico, usando a sua genialidade criativa. A passagem pelas figuras, com os zooms e os travellings usados com mestria (Os Habitantes de Aquela Casa, de Ernesto Oliveira?) cria sugestões de visitação apenas pressentidas. Nunca mostra um quadro na sua integral globalidade, antes fazendo a câmara (logo, o espectador) mover-se pelo “interior” da cada tela, de cada cor, de cada mancha, de cada traço. Numa espécie de labiríntica vertigem (Vertigo, de Hitchcok?) Oliveira recria e recria-nos sensações e angústias quase indizíveis.

Este clima fílmico é adensado, ou sublinhado, pela banda sonora assinada por mestre Carlos Paredes, num fabuloso improviso em guitarra portuguesa, conduzindo-nos através da música no tal percurso (quase) errante, escolhido pelo realizador, por entre o universo pictórico de Júlio. O sábio prolongamento do magífico improviso por alguns minutos após o termo das imagens constitui o toque mágico que nos faz regressar do sonho à terra firme.

Com cerca de 17 minutos, em notável restauro que nos possibilita o acesso a uma obra-prima quase perdida, o documentário As Pinturas do meu Irmão Júlio permite-nos, por momentos, um raro reencontro com três homens de cultura nacional da mais alta qualidade.

A versão a seguir apresentada é italiana, aquela onde a qualidade técnica me pareceu mais preservada. Esta circunstância é meramente simbólica, dado que a narração é em língua portuguesa e bastante curta, pelo que a legendagem constitui um mero pormenor.

A memória cinematográfica portuguesa do século XX ficou, assim, muito bem servida. E todos ganhámos com isso.

 António Martinó de Azevedo Coutinho

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