Peniche – Pormenores – XXVII

Peniche Porm

XXVII – Peniche em 1979 (oito)

Completa-se hoje, por fim, a abordagem aos muitos textos contidos no suplemento de “O Primeiro de Janeiro” de 27 de Novembro de 1979, dedicado a Peniche, que temos vindo a recordar.

Os dois artigos finais são muito interessantes. Um deles, Ilha da Berlenga – Centro de resistência contra as Águias Imperiais, trata um período da história local com muito interesse, onde se dá conta sumária do heróico comportamento de resistência do povo de Peniche perante os invasores napoleónicos.

O outro, Jacob Rodrigues Pereira – Apóstolo do ensino para surdos-mudos, traça um breve percurso biográfico de uma das maiores figuras naturais de Peniche, onde tem lugar de destaque na toponímia local, pois concede nome à sua mais central praça. Porque provavelmente a sua vida e obra não pertencem, como deveria acontecer, ao conhecimento geral da população a evocação deste texto pode ajudar a suprir esta falha cultural.

No próximo, e último, “capítulo” desta abordagem será feita uma breve análise global do conteúdo, das gravuras e da componente publicitária do suplemento.

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Ilha da Berlenga
Centro de resistência às águias imperiais !

 

A sombra dos exércitos de Napoleão estendia-se pela Europa. As águias imperiais eram uma ameaça!

Foi neste ambiente de maus presságios para a Pátria por­tuguesa que, em 1806, o prín­cipe D. João passou alguns dias em Peniche. Quando re­gressou a Lisboa não aderiu ao bloqueio continental e Na­poleão, como represália, ris­cou Portugal do mapa euro­peu, pelo tratado de Fontainebleau, em 27 de Outubro de 1807. E neste mesmo ano, em 30 de Novembro, o gene­ral Junot, à frente de 30 mil homens, entrou em Lisboa cuja cidade a família real abandonara na véspera, par­tindo para o Brasil. O País ficara entregue a uma regên­cia sem prestígio nem força onde pontificava o conde Sampaio – Secretário do Es­tado dos Negócios Estran­geiros e da Guerra. A sua or­dem era no sentido de se dis­pensar aos franceses “toda a deferência e respeito”!

Oito dias depois da ocupa­ção de Lisboa, devido à sua posição estratégica, surgiu a vez de Peniche. O general Thomiéres entrou triunfal­mente na vila.

O conde Sampaio intimou a entrega imediata da forta­leza ao exército napoleónico, devendo a guarnição do forte abandonar a posição e aquartelar-se em Óbidos.

Luís António Castelo Bran­co, governador da Praça de Peniche, embora contra a sua vontade, dispôs-se a receber o oficial francês com um in­térprete.

Thomiéres, quando teve conhecimento que aquele, na qualidade de comandante do célebre regimento de Peni­che, participara na campanha do Roussillon, observou mostrar-se bastante surpreendi­do que não falasse uma pala­vra de francês.

O ar de desconsideração e desprezo patenteado pelo ofi­cial de Napoleão motivou pronta resposta do brigadei­ro português que ordenou ao intérprete:

– Diga a esse senhor que mais admirado estou eu de ele vir a Portugal, sem que ninguém de cá o chamasse e sem falar português!

E enquanto este traduzia a resposta, Luís António Caste­lo Branco retirou-se, voltan­do as costas ao general fran­cês.

O que os franceses fizeram na sua missão de “amizade e auxílio” na expressão infeliz do conde de Sampaio – não tem conta: desceram a ban­deira portuguesa, picaram as armas embutidas na porta principal da cidadela e esta­beleceram um regime de ter­ror semelhante ao de outras terras do País onde o seu do­mínio se manifestou em des­truições, ultrajes e roubos.

Convencido de que viera para ficar, Junot mandou re­parar alguns troços arruinados da cinta de muralhas e construir um pequeno fortim no alto dos rochedos do Ba [existe aqui uma falha no texto original] ainda de ter outros desaires antes de acompanhar Junot na sua derrocada nas bata­lhas de Roliça e de Vimeiro, desastrosas para a perma­nência dos exércitos napo­leónicos na península Ibérica.

Para se avaliar o receio que a certo momento os franceses tiveram dos ingle­ses e da revolta dos patrio­tas portugueses cuja resistên­cia ao invasor foi um facto, basta apenas lembrar alguns episódios que cobriram de ridículo o general francês, comandante do forte de Pe­niche.

Uma vez a praça esteve num alerta rigoroso por um grupo de estudantes ter disparado duas pequenas peças trazidas de Leiria, cuja cida­de fora ousadamente tomada aos franceses, e descia para o sul disposto a libertar Na­zaré, a Pederneira e Peni­che…!

Outra ocasião, os toques de clarim encheram os ares e a praça ficou em expecta­tiva

Ao longe, um grupo de ca­valeiros vestidos de verme­lho e bandeiras ao vento cavalgava para as muralhas.

Thomiéres, impaciente, mandou reconhecer o atre­vido inimigo.

No vasto areal do istmo, onde postou os seus homens, a infantaria aguardou o ataque. No entanto, os cavalei­ros continuaram a avançar sem darem mostras de se preocuparem com os defen­sores da fortaleza. Recean­do qualquer armadilha, o general francês antecipou-se e mandou envolver de baio­neta em punho o numeroso esquadrão que não disparou um só tiro.

O terrível exército inglês não passava afinal de um pa­cífico grupo de romeiros que, com fervor e fé, prestava o seu culto à Virgem dos Re­médios!

O descalabro económico, causado por pesados tribu­tos, e a tirania dos franceses aumentaram as forças da resis­tência. Deste modo, grande número de penichenses começou a emigrar para a Berlenga que fora ocupada pelos ingleses. Eram os próprios penichenses quem, pela cala­da da noite, transportavam os soldados britânicos nos seus barcos a fim de fazerem pe­quenas surtidas contra os franceses.

Estes actos de guerrilha enfraqueceram a moral dos invasores que assistiram impotentes ao aprisionamen­to por este processo de guar­das inteiras que eram surpreendidas sem terem tem­po para esboçar qualquer gesto de defesa.

Os pequenos barcos de pes­ca desempenharam também importante papel no desem­barque dos ingleses na praia de Porto Novo, onde se jun­taram aos exércitos anglo-lusos, comandados por Wel­lington.

Em 1808, com a derrota de Junot, a bandeira das cinco quinas tremulava novamente na cidadela de Peniche.

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Jacob Rodrigues Pereira
Apóstolo do ensino para surdos-mudos

 

A vila de Peniche serviu de berço a alguns vultos que ligaram o seu nome às artes, às ciências, à religião e à administração pública, enquanto outros, vindos de fora, também deram muito da sua vida, do seu saber e virtude a esta terra hospitaleira.

 

Pareceu-nos oportuno es­colher o nome de Jacob Ro­drigues Pereira, inventor do alfabeto para o ensino de surdos-mudos, e que a tra­dição diz ter nascido na Berlenga, em 11 de Abril de 1715.

No entanto, aqui regista­mos outras figuras de que o concelho de Peniche tan­to se orgulha, nomeadamen­te os padres Lourenço Anes e João Anes, D. Luís de Ataíde, Pedro Salgado, Ja­cinto Ferreira Viçoso (Bis­po de Mariana), Pedro Cer­vantes, Dr. Pedro António Monteiro, Mendo Fóios Osó­rio e tantos outros que, por nascimento e obras, são penichenses que ocuparam po­sições de relevo nos diferen­tes ramos da actividade hu­mana.

Jacob Rodrigues Pereira, oriundo de família Judaica radicada há muito no nosso país, segundo alguns auto­res, teria também possivel­mente nascido na Estrema­dura espanhola, em Berlen­ga, quando os seus pais fu­giam às perseguições reli­giosas que foram implacá­veis tanto em Portugal co­mo em Espanha. Contudo, por respeito à tradição, ainda hoje Peniche mantém acesa a sua veneração a es­te português ilustre cujo busto se encontra no jar­dim público da vila.

Sabe-se que, em 1734, Ja­cob Rodrigues Pereira encontrava-se em Paris, en­quanto os seus pais viviam na Rochela onde promoviam a educação de uma sua ir­mã surda-muda.

Esta circunstância de or­dem familiar cedo colocou Jacob Rodrigues Pereira perante o mundo isolado do silêncio e influenciou forte­mente os seus interesses científicos. Assim, relacionou-se com o sábio francês Barbot e como resultado das suas investigações e da sua experiência quotidiana so­bre o problema e a sua melhor resolução, em 1745, apresentou, na Academia de Caen, um surdo-mudo de 16 anos, chamado Aaron Beau-Marin, que respondeu pron­tamente por escrito e com judiciosa correcção a tudo que lhe perguntaram.

Estava dado o primeiro grande passo para o diálogo com os surdo-mudos, atra­vés de um alfabeto manual com mais de 80 sinais gráficos.

Como, em regra, acontece existir um certo cepticismo a tudo que surge de novo no campo científico, Jacob Rodrigues Pereira também lutou no seu tempo contra a rotina, o preconceito e a descrença que motivaram o estudo do seu método em crianças pobres que não lhe podiam pagar os seus ser­viços.

Só a partir de 1749, quan­do o cientista português se apresentou perante uma comissão de sábios, entre eles o naturalista Buffon e os professores Mairan e Ferrien, com o seu discípulo Afi d’Etavigny, conseguiu finalmente ver reconhecidos os resultados do seu traba­lho.

Com efeito, a referida co­missão referiu o notável tra­balho do português à Academia das Ciências projec­tando assim o seu reconhe­cimento internacional ao mesmo tempo que as acade­mias, apostadas no desen­volvimento científico, disputavam a sua presença e tributavam-lhe numerosos aplausos.

A fama de Jacob Rodrigues Pereira foi generosa­mente compensada por Luis XV, rei de França, que lhe concedeu uma pensão anual de 800 libras, em 1751, e nomeou-o seu intérprete de português e espanhol, em 1764.

Os intelectuais e políticos como Gondamine, Rousseau, Diderot e D´Alembert, assinalaram os seus talentos com rasgados elogios.

Estava-se no prelúdio da igualdade, fraternidade e solidariedade e a palavra liberdade entoava em todos os corações como um hino. Quem melhor do que Jacob Rodrigues Pereira tocara na corda sensível do ser hu­mano?

Outras manifestações de apreço vieram de todo o lado. O vice-rei da Sarde­nha confiou-lhe a educação de uma sobrinha surda-muda, os reis da Polónia, Sué­cia e Dinamarca agraciaram-no com honrarias e au­diências especiais.

E qual o discutido méto­do de Jacob Rodrigues Pe­reira?

Se é certo que introduziu em França os métodos da educação de surdos-mudos, nunca os divulgou comple­tamente, embora expusesse os princípios gerais que permitiram o desenvolvimento e estudo desta matéria.

Na prática, ele ensinava os surdos-mudos a articu­lar sons e palavras segundo as impressões obtidas pelos sentidos, designadamente a vista, o ouvido, o tacto que eram auxiliados por alfabe­to com mais de 80 sinais gráficos. Este alfabeto era o ponto de encontro entre a pronúncia e a ortografia, sendo a entoação marcada com o gesto e o som, tal co­mo acontece na música.

Jacob Rodrigues Pereira inventou ainda um tubo acústico para o ensino da articulação das palavras que obtinha extraordinários re­sultados nas crianças. O es­tudo da fonética era um precioso auxiliar a que re­corria permanentemente para melhor ensinar os sur­dos-mudos.

O homem que ascendeu com a sua descoberta a grande benemérito da humanidade, dedicou-se tam­bém a estudos matemáti­cos, deixando uma valiosa Memória sobre o modo de suprir a acção dos ventos nos grandes navios e um projecto de seguros maríti­mos a que se deu grande valor na época.

Enquanto o abade Deschamps prestou justiça ao trabalho  desenvolvido por Jacob Pereira no Curso de Educação de Surdos-Mudos, onde revela que aquele lhe explicou minuciosamente o seu método, o abade de L’Epée atacou-o no livro Instituição dos Surdos e Mudos.

O maior desgosto, no en­tanto, foi o facto de o rei de França ter concedido ao seu rival o patrocínio da criação do primeiro Institu­to de Surdos-Mudos do mundo e cuja honra tanto desejara e justificara. O ins­tituto a que se ligou o no­me do abade L’Epée serviu de modelo aos institutos que nasceram posteriormente em outros países.

Jacob Rodrigues Pereira, além da Memória apresen­tada à Academia das Ciên­cias de Paris, deixou ainda escrito Observações Sobre Surdos-Mudos que foram inseridas num volume publi­cado em França, em 1739, sobre sábios estrangeiros.

Em 1771, este ilustre por­tuguês foi eleito sócio da Sociedade Real de Londres.

dúvidas quanto à si­tuação material de Jacob Rodrigues Pereira, na altura da sua morte. Enquanto Barbosa de Pinho Leal as­sinala em Portugal Antigo e Moderno que morreu em Paris, possivelmente em 1774, já que existem autores que indicam a sua morte em 1780, sendo sepultado no cemitério de Villette, “cheio de honras e riquezas”, a Grande Enciclopédia Portu­guesa e Brasileira regista que “morreu pobre, sem tor­nar público o seu método completo, racional e fecun­do”.

O problema é um mero dado circunstancial que se perde no tempo da história e esbate-se mediante a en­vergadura da obra deste penichense que conheceu em vida todas as homenagens a que um cientista pode as­pirar e o reconhecimento público dos seus trabalhos em imensas edições cientí­ficas e culturais da Europa. No entanto, fica-nos a cer­teza, quando nos debruçamos sobre o significado da sua descoberta e da sua obra, de que Jacob Rodri­gues Pereira foi um grande apóstolo da educação dos surdos-mudos, quebrando a neutralidade inerte dos se­res que pareciam condenados ao mais trágico e pro­fundo isolamento. Graças a ele a barreira do silêncio foi vencida.

 

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