Júlio Maria dos Reis Pereira

saul 00Júlio Maria dos Reis Pereira, irmão de Régio –Júlio na obra pictória e Saul Dias na poética-, nasceu em Vila do Conde a 1 de Novembro de 1902, pouco mais de um ano após o seu mano José.

Conheci o engenheiro Júlio dos Reis Pereira num único encontro, breve mas significativo, em Outubro de 1951, na cidade de Évora, onde ele trabalhava.

Nesta efeméride do seu nascimento, quero hoje lembrá-lo, de duas formas complementares. Uma, pelo relato pessoal desse encontro, recordando um texto que escrevi há treze anos no jornal portalegrense Fonte Nova; outra, através do qualificado testemunho de três intelectuais: José Augusto Seabra (Obra Poética de Saul Dias, in O Primeiro de Janeiro de 27 de Fevereiro de 1980), Anabela Saint-Maurice (Júlio, 80 anos – o sonho exposto em Lisboa, in Tempo Magazine de 11 de Novembro de 1982) e Joaquim Pacheco Neves (O meu amigo Saul Dias, in O Primeiro de Janeiro de 6 de Julho de 1983). Junto Dados Biográficos e Notas sobre as Actividades de Júlio e de Saul Dias, um bem documentado registo sobre a obra do autor, constante de O Primeiro de Janeiro de 27 de Outubro de 1982.

 

RÉGIO OU O DISCRETO AMIGO

Entre os novos amigos que ganhei encontra-se o Eng. José Alberto Reis Pereira, filho de Júlio, sobrinho de Régio e, de certo modo, herdeiro espiritual de ambos.

Algumas vezes o visitei, e a sua Mãe, na casa de Vila do Conde e, noutras, sobretudo em Portalegre e também em Lisboa, múltiplos motivos e projectos em torno da evocação de Régio nos juntaram.

Certo dia, há anos, confidenciou-me que encontrara, entre o vasto espólio epistolar de seu Pai, uma carta que me dizia respeito. Desde logo uma natural expectativa ficou desperta para o conhecimento daquilo que Régio escrevera a seu irmão a pretexto do apoio que este potencialmente disponibilizaria durante a minha estada em Évora, nos já distantes anos de 1951 e 1952.

Meses depois -este episódio ocorreu em meados de 1994- José Alberto saul 05ofereceu-me a carta, juntamente com uma preciosa serigrafia de António Inverno, reproduzindo a aguarela “Menina”, de Júlio (1976).  Passado o deslumbramento da surpresa logo outro, ainda maior, me tolheu: a carta de Régio não era a mesma de que eu próprio fora portador, mas uma outra, enviada por via postal e pela mesma altura, ao seu irmão Júlio!

Lembro-me claramente dos pormenores daquela tarde quase mágica, na requintada sede dos Monumentos e Edifícios Públicos do Sul (não sei se era esta a designação exacta da Repartição em causa, incluindo Monumentos…). Poucos dias depois de ter chegado a Évora, cumpri, sabe-se lá com que custo!, a tarefa de que Régio, e depois D. Rosalina e minha Mãe, me tinham incumbido. Entreguei a carta, fechada como a recebera, ao velho contínuo fardado que se postava no átrio, desde logo majestoso. Pedindo-me um minuto de espera pois iria entregar o documento ao senhor Director, subiu a custo a ampla escadaria que, logo a seguir, o Eng. Júlio Reis Pereira desceria com a carta na mão. Também baixo embora menos franzino que o seu irmão José Maria, Júlio pôs-me a mão no ombro e conduziu-me afectuosamente ao seu magnífico gabinete. Conversando e procurando conhecer algo sobre a minha situação e os meus projectos, garantiu-me aí a sua ajuda e protecção, num meio para mim hostil, expulso pela primeira vez, aos dezasseis anos, da casa e companhia protectoras. A voz de Júlio, com a mesma inconfundível pronúncia do norte, assemelhava-se imenso à de Régio, no timbre, ressonância e modulações que me eram familiares. Prolongou-se o diálogo por uma boa meia-hora, naquele cenário dominado pela serena luz da tarde, velada pelos pesados reposteiros em torno da grande vidraça que separava o salão, excelentemente decorado, de um bem tratado jardim contíguo. Balbuciei-lhe por fim um tímido agradecimento e nunca mais o procurei nem sequer o vi.

Por que conseguiria resolver, sozinho, os meus problemas, e estes não foram poucos nem pequenos? Por envergonhada, provinciana e irremediável timidez? Provavelmente em parte por tudo isso mas também por qualquer outra daquelas misteriosas e íntimas razões que nunca conseguimos claramente explicar.

Porém, tivesse eu adivinhado o futuro…

E aquela carta que lá ficou, sem selo nem carimbo de correio, nem sequer endereço postal, não era afinal a que, mais de quarenta anos depois, me foi gentil e fidalgamente entregue por José Alberto Reis Pereira. 

Régio, que me conhecia mais e melhor do que eu alguma vez me atreveria a pensar, sabia que a outra carta, entregue por mão própria com o testemunho de D. Rosalina, bem poderia nunca chegar ao seu destinatário… Portanto, à cautela, escreveu à Mãe, avisando-a da iniciativa, e -repetindo-se- voltou a escrever ao irmão Júlio, admitindo claramente todas as hipóteses quanto ao meu comportamento. E é aqui que reside o fascínio deste episódio: Régio, o exigente professor, o tímido cidadão, o distante criador, revela-se um atento, embora discreto, amigo. Tão atento e discreto que se mostra apenas quando é preciso, e então não hesita, porque acha motu proprio que pode ser útil e porque entende que deve utilizar todos os recursos à sua disposição para fazer valer, de facto, essa voluntária disponibilidade. E, depois, há ainda o fascinante e desvanecedor conteúdo desta carta, supostamente semelhante ao da outra: a sua desinteressada amizade por mim, o seu crédito nas minhas faculdades, sobretudo nas artísticas, o seu delicado respeito para com a minha Mãe, salientando a tranquilidade que lhe iriam conferir a sua protecção e a do irmão.

Ernesto de Oliveira, notável jurista nascido em Póvoa e Meadas e infelizmente já desaparecido, num depoimento contido no número especial de “A Cidade” dedicado a Régio, chamou a este um homem atento e raro. Creio que posso confirmar, em absoluto, o título de humana nobreza que o seu amigo e confidente tão justamente lhe aplicou.

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Aqui ficam a carta e a sua mensagem, assim reveladas porque insuspeitos testemunhos duma faceta bem pouco conhecida da complexa e invulgar personalidade humana de José Régio. A solidariedade mais autêntica e mais fraterna é anónima e esta, embora tenha deixado de o ser a partir de agora, confirma a regra.

De facto… há mais mundos. 


                                                                                     Portalegre, Inverno de 2000
António Martinó de Azevedo Coutinho

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