Uma data de datas – LXVIII – A revista Modas & Bordados

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LXVIII – 2 de Fevereiro de 1977 –
O final da revista Modas & Bordados

 

Quando se evoca o título da antiga revista semanal Mulher – Modas & Bordados, seremos quase inconscientemente levados a pensar em banalidades mais ou menos feministas e conservadoras. Nada de mais errado. Ligar apenas linhas, dedais, tesouras e agulhas a uma publicação que atravessou uma boa parte do século XX nacional constituiria uma flagrante injustiça.

Nascida do jornal O Século como seu suplemento feminino, a partir de 1912, encontrou a sociedade portuguesa numa febril adaptação à radical mudança de regime. Por isso, no seus inícios, dirigida a uma pretensa elite feminina, Modas & Bordados fornecia-lhe conselhos de moda, culinária, boas-maneiras e beleza. Muitas vezes, o suplemento pouco mais tinha do que publicidade e moldes de costura.

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Foi progressivamente ganhando algum sentido cultural, de que é significativo exemplo a publicação regular de sonetos de Florbela Espanca.

Contando com Maria Lamas na sua direcção, a partir de Maio de 1930, o suplemento acrescentou ao seu título original a expressão Vida Feminina. A inserção de uma espécie de “consultório” –O Correio de Joaninha– estabeleceu uma interessante e viva relação epistolar pública com as leitoras. E a Tia Filomena (pseudónimo de Maria Lamas) respondia em tom cúmplice e inteligente às intimidades espontaneamente reveladas pelas correspondentes.

O volume do público abrangido cresceu de tal modo que em 1938, Modas & Bordados – Vida Feminina se tornou uma revista autónoma, inspirando até um programa radiofónico na Emissora Nacional intitulado Meia Hora de Recreio para Raparigas. O êxito cresceu e, em 1946, deu origem ao Movimento de Acção Juvenil Joaninha, de âmbito nacional.

Maria Lamas, entusiasmada com a dimensão cultural das suas iniciativas, 16atreveu-se a organizar na Sociedade Nacional de Belas Artes a exposição Livros de Escritoras de Todo o Mundo. O seu óbvio objectivo era o de revelar às mulheres portuguesas a importância dos sentimentos e opiniões femininas libertas de controlo e censura governamentais, como sucedia no nosso país. Como seria natural (!?), a PIDE, já atenta às movimentações de Maria Lamas, decidiu encerrar a mostra. Mas as amigas da directora da publicação organizadora conseguiriam retirar e salvaguardar as obras expostas, antes da chegada dos polícias… O preço foi a sua expulsão da direcção da revista.

Sucedeu-lhe Etelvina Lopes de Almeida, amiga e admiradora de Maria Lamas, que procurou manter, modernizando-o, o nível da publicação. A publicidade desviou-se nitidamente do padrão habitual, inserindo, por exemplo, anúncios a automóveis.

Em 1966, causou escândalo ao publicitar tampões para higiene feminina, com a fotografia de uma mulher em fato de banho…

E, quando a directora subscreveu um documento contra a Guerra Colonial, logo a PIDE tratou de a fazer seguir o caminho da sua antecessora.

O 25 de Abril encontrou ecos na Modas & Bordados – Vida Feminina, que de imediato nomeou Maria Lamas como sua directora honorária, mudando novamente o título da publicação que pouco depois passou ostentar no cabeçalho: Mulher. Modas e Bordados. Esta mudança não foi apenas formal, pois reflectiu-se numa reorganização interna e na linha editorial. Passou então a integrar a Empresa Pública dos Jornais Século e Popular.

A capa, que até então fora sempre preenchida com figurinos e manequins, por vezes com imagens de personalidades, passou a ostentar a referência a um tema de referência com desenvolvimento no interior. Por exemplo, em 1 de Setembro de 1976, a capa de Mulher. Modas e Bordados continha o título: Crianças trabalham de madrugada.

As temáticas de promoção da condição feminina ganharam primazia e os assuntos políticos dispuseram de espaço privilegiado nessa renovada publicação, então com mais de sessenta anos de existência. Pode afirmar-se, sem qualquer exagero, que a revista semanal se tornara um baluarte da intervenção feminina e era lida por mulheres politica e civicamente esclarecidas.

Mas os tempos não iam famosos para a comunicação social. Integrados numa empresa pública, o jornal O Século e as publicações dele derivadas foram acumulando prejuízos incompatíveis com as regras do jogo económico em vigor.

Como se revelou incapaz de gerar os lucros exigidos por lei, o responsável pela secretaria de Estado da Comunicação Social, o poeta Manuel Alegre, decretou a suspensão daquela empresa pública, em 7 de Fevereiro de 1977.

O final de Mulher. Modas e Bordados revestiu-se de exemplar dignidade. Já aqui reproduzi as páginas e os lamentos de outras publicações periódicas desaparecidas. Creio que nenhuma, como esta, foi capaz de atingir o inevitável termo com a qualidade com que o fez, compatível com o seu invulgar percurso, ao longo de muitas décadas do conturbado século XX nacional, desde as ilusões da Primeira República, ao amargo Estado Novo e às euforias democráticas de uma recente modernidade, como amiga de confiança e sábia conselheira das mulheres portuguesas.

 

O número 3379 ano LXV, relativo a 2 de Fevereiro de 1977, da revista Mulher. Modas e Bordados é influenciado pela iminente ameaça da sua suspensão. A capa e uma dúzia de páginas do semanário são por isso dedicadas ao momentoso problema.

A directora, Maria António Fiadeiro, escreve o Editorial, Haverá que fazer referência, onde afirma:

A concepção deste número da revista ‘Mulher’ – ameaçada de suspensão – foi feita sob pressão das circunstâncias e sob o lema ‘Operação Defesa’. O lema pode parecer dramático mas, na realidade, trata-se da sobrevivência de um órgão de comunicação que nós, como profissionais da Imprensa, defendemos em nosso nome e em nome de muitas mulheres portuguesas. Este número foi feito na incerteza do será o último e na esperança de que assim não seja“.

Foi o último. Mas a presença luminosa da obra, de uma das obras de Maria Lamas, permanece.

Aqui fica este testemunho, sob a forma da lembrança da efeméride, na evocação do final glorioso de uma revista que marcou presença indelével na imprensa nacional. O invulgar conjunto de personalidades e de depoimentos aqui reunidos confere um sinal que qualidade à publicação, apenas igualado pela sua dignidade.

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2 thoughts on “Uma data de datas – LXVIII – A revista Modas & Bordados

  1. Felicito-o por mais um excelente e oportuno artigo, desta feita sobre uma publicação periódica que, embora destinada ao público feminino, também marcou, pela sua longevidade e por estar presente em muitos lares portugueses, o imaginário de jovens de ambos os sexos que liam com prazer (e sem complexos, como foi o meu caso) o seu suplemento infantil “Joaninha”. Recordo que neste, que também teve vida longa (e vários formatos), se encontravam histórias aos quadradinhos de muitos e bons autores, como, por exemplo, entre os de renome nacional, José Garcês. Foi na “Modas & Bordados”, aliás, no próprio corpo da revista, que surgiu uma primorosa adaptação de “Eurico, o Presbítero”, também com o traço de Garcês e texto de Etelvina Lopes de Almeida.
    Mais tarde, essa adaptação do romance de Alexandre Herculano foi reeditada na colecção Antologia da BD Portuguesa, que eu coordenei nos anos 80 para a Editorial Futura, também de saudosa memória. E tive de mudar o parco texto da Etelvina, por vontade do editor, substituindo-o por um arranjo que eu próprio fiz da prosa do Herculano, e que a Catherine, coitada, teve de legendar à mão. Sempre que me lembro desse trabalho de legendação e revisão, moroso e exaustivo, penso que foi uma das tarefas mais penosas que eu e a Catherine tivemos de enfrentar na nossa vida profissional… mas, na altura, nem hesitei em aceitar o repto.
    Lembro-me ainda de que a “Joaninha”, numa das suas fases, publicou várias histórias de origem estrangeira, entre elas uma magnífica série americana, “Little Annie Rooney”, que eu comecei a ler (e a apreciar) no velho “O Mosquito” e que, como é óbvio, também procurei seguir na “Joaninha”. Aliás, em casa do meu pai a “Modas & Bordados”, durante uns tempos, nunca faltou e eu era sempre o primeiro a surripiar o suplemento para não perder a continuação daquela e de outras histórias. A “febre” desses tempos juvenis não me contagiou só a mim, pois conheço muitos coleccionadores que ainda hoje procuram afanosamente esse suplemento, que além de ter tido vida longa (como o “Pim-Pam-Pum” d’O Século), não é nada fácil de encontrar. Mas para os amantes de revistas e suplementos infanto-juvenis tem muito valor…

    Um grande abraço do
    Jorge Magalhães

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