Sob o signo da borracha

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SOB O SIGNO DA BORRACHA
ou CRÓNICAS DA BOA CENSURA

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São quase  sempre surpreendentes certos percursos da memória e ainda mais os das redes cerebrais que se estabelecem a tal propósito. Quando dou por isso, o que me acontece com frequência, fico fascinado. Ontem, como quase sempre, as evocações que Jorge Magalhães me propôs no seu blog O Gato Alfarrabista… repetiram em mim esse fenómeno.

A propósito, feliz propósito, de Santo António, ele trouxe-me Hergé e uma das suas mais interessantes criações, as Tropelias do Trovão e do Relâmpago, que foi assim que as encontrei, nos saudosos tempos do Diabrete, enquanto também conhecia o autor, Hergé, por outras vias, as do Papagaio. Com Tim-Tim e Rom-Rom.

Aquela rara história de Quick et Flupke (aqui Quim e Filipe) foi novidade, emoção e rastilho. Novidade, porque não a conhecia. Posso garantir que, quer nos fascículos que possuo (apenas metade da colectânea original, cinco), quer na selecção constante do volume dos Archives Hergé dedicado a Les Exploits de Quick et Flupke, aquelas pranchas não constam. O Diabrete também não as publicara, tanto quanto me lembro…

flickpeEmoção porque não é, nunca será, com neutra ou isenta tranquilidade que contacto com recordações evocativas desses tempos de fascinante descoberta dos heróis de papel, imortais, que ainda hoje convivem e rivalizam com Afonso Henriques ou Nuno Álvares. Convivem e rivalizam em mim, nas grandezas e fragilidades do meu espírito. Único, para o melhor e para o pior.

Rastilho foi ainda aquela provocação, pretexto imediato de complexas e inesperadas redes de ligação que me trouxeram, juntando-as por um dos tais electrónicos laços cerebrais, leitura fresca, lembrança recente e história antiga.

A questão central prende-se ao tema, pouco “edificante” e actual, das manifestações públicas colectivas. Aquela guerrilha urbana provocada pelo Quick, com apedrejamentos, feridos e (eventuais) detenções fez lembrar recentes acontecimentos, vividos no nosso quotidiano indígena e também a despropósito. Portanto, aquilo não é de bom tom lembrar. Vale mais a pena pôr de lado, esquecer, censurar, apagar da memória…

E é aqui que as coisas se pegam. Colam-se, por exemplo, com um texto de página inteira no Diário de Notícias da passada quinta-feira, 11. A jornalista Joana Capucho desenvolvia aí, com outras opiniões sobretudo contrárias, a posição de um ilustre cientista e pedagogo inglês, Guy Claxton, de que a borracha devia ser banida da sala de aulas por criar uma cultura de vergonha do erro. O professor britânico chega a crismar o vulgar utensílio escolar de “instrumento do diabo”!, o que me faz duvidar da utilidade das clássicas forquilhas demoníacas.

qf borracha dn 11 junho

Enfim, por antinomia, lembrei esta censura da borracha ligando-a à censura moral que aconselharia o apagamento da historieta de Quick et Flupke… ou então a sua “devolução” ao inofensivo calendário antoniano de 1956. Deixo de fora, nesta oportunidade, uma outra censura, a dos nomes estrangeiros obrigados por imperativo legal do Estado Novo a uma forçada e desnaturada “nacionalização”: Quim e Filipe ou Trovão e Relâmpago

Falta citar a derradeira associação de ideias gerada pela amiga “provocação” de Jorge Magalhães. Como estas coisas são como as pescadinhas de rabo na boca, algo incontornavelmente nacional, também a lembrança me remeteu para algo que constituiu um projecto inscrito nos meus planos, para o qual ainda não encontrei suficiente motivação, em tempo e espaço: a devida e justa evocação eqf 4 homenagem a um ocasional mas saudoso companheiro de antigas aventura nas artes plásticas, Amílcar Ponte de Abreu, um dos nomes ainda quase ignorados, ou anónimos, do nosso universo dos quadradinhos. E tem já um ano este meu adiado projecto, desde a oportunidade que nasceu em Portalegre, em Maio de 2014, quando o artista ali foi lembrado com uma exposição que ainda prossegue oportuna itinerância, precisamente intitulada Desenhar sem Apagar. Era este um seu lema de trabalho, antecipando em décadas a teoria de Guy Claxton. Só que as suas motivações são distintas, qf 0porque onde o cientista vê a vergonha do erro propunha o artista a coragem do risco.

Fico por aqui, ainda que o tema seja praticamente inesgotável.

Mas faço-o na companhia do pretexto inicial, a historieta de Quick et Flupke e o seu “psicológico” desenvolvimento pessoal. Por isso mobilizei o Quick das páginas dos Archives Hergé para uma outra função, a de demonstrar que afinal o uso “pedagógico” da borracha até pode dar mesmo jeito.

 António Martinó de Azevedo Coutinho

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