Caminhos de Santiago – zero

Dia 0

Estamos a 27 de abril de 2024, dois amigos de Peniche, não ingleses do século XVI que pretendem saquear costa abaixo até Lisboa, mas dois portugueses que querem peregrinar costa acima até Santiago de Compostela. Fazia já dois meses que se tinham desafiado a tamanho intento, movia-os o espírito de aventura, a tentativa de descoberta espiritual, de reflexão, mas acima de tudo a sua amizade. Pretendiam ter ido em grupo, mas a imprevisível lesão e consequente operação de um e a obrigação de concluir o estágio em ensino de outro não permitiram que fossem quatro ao invés de dois.

            Partem estes dois amigos com todas as certezas que a internet permite ter atualmente, sabiam quantos quilómetros iam andar diariamente, que meteorologia estava prevista, ondem podiam dormir, comer, descansar, onde haveria uma subida íngreme seguida de uma descida vertiginosa, quais eram as melhores vistas e pontos de interesse. Esta sabedoria digital que nos inunda com mais informação do que aquela que conseguimos processar dava no entanto lugar à inquietação. Havia algo que nenhum meio informático, nenhum livro, ninguém nos podia preparar ou dar certezas, o que íamos afinal encontrar no caminho, dentro de cada um, em conversa entre os dois. Haveria tema de conversa para 7 dias ininterruptos de caminhada? Para longos 161 km? Nada disso interessava afinal, levamos vidas tão apressadas, sequenciais e mecânicas, casa-trabalho-faculdade-casa, que é difícil de parar para ouvir, para pensar, para sentir. Convencemo-nos, numa sobranceria e altivez características da sociedade de capitalismo intensivo, de que tudo o homem pode controlar, prever, conquistar, destruir, saquear, esquecemo-nos, ou não nos é incentivado que tenhamos tempo com a única finalidade de o ter, de apenas estar. É um pouco em busca deste sossego contemplativo que estes dois amigos partem rumo a Santiago de Compostela.

“Há, para todas as coisas, um tempo determinado por Deus

1 TUDO tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: 2 Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; 3 Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar. 4 Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar; 5 Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; 6 Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora; 7 Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; 8 Tempo de amar, e tempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo de paz.” (Ecl 3, 1-8)

            Urgia preparar a mochila com o imprescindível, roupa, kit de higiene e de primeiros socorros, impermeável, chapéu, cantil, saco de cama, protetor solar e também óculos de sol, uma mochila cheia com tudo necessário e um coração aberto ao silencio, profundidade, liberdade e descoberta dos dias que seguem, aberto à alegria, à tristeza, ao pensamento e à reflexão. Podemos partir na certeza de que não caminharemos sozinhos, mas que teremos Deus ao nosso lado, sem nunca nos abandonar, partimos também, em busca de o encontrar. Levamos ainda às costas o peso das nossas intenções, receios, sonhos e ambições para a vida que entregamos inteiramente ao caminho destes dias e ao que ele nos desvendar.

Esmaga-nos a longevidade desta prática, há mais de mil anos que todos os anos peregrinos se deslocam a Santiago de Compostela em busca de recoleção e descoberta espiritual com um destino único o túmulo de São Tiago, ou São Tiago Maior, um dos 12 Apóstolos de Jesus, um dos que há 2000 anos testemunhou a vida de Jesus. É certamente procurado como exemplo, mas também como uma das testemunhas da vida e exemplo de Jesus Cristo e como pretexto e veículo de uma maior proximidade com Deus.  

Amanhã partiremos pelas oito horas da manhã rumo a Caminha, ponto de partida da nossa jornada.

André Silva e Manuel Coutinho

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