Caminhos de Santiago – seis – Santiago de Compostela

Dia 6

Um novo dia nasce em Santiago de Compostela, abençoado pela chuva que cai ininterruptamente quase que como homenagem a grande parte do nosso percurso até aqui chegar. Este tempo e o desenvolvimento urbano da cidade não nos permitem verificar a razão de ser do nome deste destino de tantos milhões de peregrinos ao longo de mais de mil anos. Santiago deve-se à presença do túmulo e dos restos mortais de um dos 12 apóstolos de Jesus Cristo, São Tiago o Maior. Compostela deriva da expressão em latim “campus stellae”, campo de estrelas, uma vez que foi uma chuva de estrelas que indicou a localização do túmulo do Apóstolo a Pelayo, um eremita que vivia nos bosques circundantes, no distante ano de 813 DC (um agradecimento ao nosso amigo do Camiño José Albano que partilhou connosco este contexto histórico).

Imbuídos neste manto histórico e sobretudo espiritual começámos este dia que pretendia ser um tranquilo e sereno momento de contemplação. Contemplação da Catedral, do túmulo de Santiago, da eucaristia, do bonito centro histórico, do caminho que deixávamos para trás, com olhos postos no caminho que se seguirá e que depositamos confiadamente nas mãos de Deus, com a confiança de que -tal como inúmeras vezes nestes dias- ele providenciará. Tínhamos alguns objetivos já pré-definidos para o dia, obter a Compostela, fazer a visita, veneração e participar na missa do peregrino na Catedral, comprar alguns souvenirs e, não menos importante, recebermos o nosso companheiro de jornada Albano à sua chegada.

De modo a cumprirmos tão ambicioso plano de forma leve e uma vez que os corpos se habituaram nestes últimos dias a madrugar, o nosso dia começou pelas 7h30 com o pequeno-almoço ainda no albergue onde ficámos. De seguida partimos rumo à Oficina do Peregrino onde iríamos obter a Compostela. A cidade acordou fria e sob uma forte chuva intensificada por ocasionais e desagradáveis rajadas de vento. Vimos as condições meteorológicas como uma validação divina da nossa decisão de, na véspera, adiantar a chegada a Santiago. Dava-se um fenómeno interessante, no nosso dia a dia evitamos a chuva, andamos com guarda-chuvas e não toleramos a mínima pinga de água que nos cai em cima; estes dias pareciam ter criado uma tolerância pouco natural em nós. Não estranhávamos a chuva, não a evitávamos, mas acolhíamo-la com pragmatismo e naturalidade, caminhando tranquilamente no meio de um mundo de guarda-chuvas e ponchos impermeáveis. Será que estávamos certos? Será mesmo que chuva civil não molha peregrinos?

A primeira missão do dia era dirigirmo-nos à Oficina do Peregrino onde pretendíamos obter o nosso comprovativo de conclusão do camiño, a famosa Compostela. Pode obter a Compostela qualquer peregrino que complete mais do que 100km a pé através das rotas oficiais, apresentando a sua credencial com um mínimo de 2 selos por dia em locais diversos ao longo do caminho de forma a comprovar a sua lealdade. Em alternativa, o caminho pode ainda ser completo a cavalo ou em bicicleta, no primeiro caso respeitam-se os 100km mínimos e para o segundo caso existe um mínimo de 200km. Por último pode ainda ser completado de barco sendo necessárias um mínimo de 100 milhas náuticas e tendo os últimos quilómetros que serem percorridos a pé desde o Monte do Gozo. Este documento comprova que a peregrinação foi realizada com um propósito religioso/espiritual e foi criado logo no século IX/X como forma de credenciar as visitas ao túmulo do Apóstolo. Chegámos à Oficina do peregrino, preenchemos os nossos dados pessoais num computador e tirámos uma senha. Findos 15 minutos tínhamos na nossa posse a Compostela personalizada, bem como o certificado dos 174km feitos desde Caminha. Ficámos impressionados pela excelente organização e diligência dos funcionários, um sistema bem oleado por milhares de peregrinos que chegam diariamente à cidade.

Cumprida esta primeira missão do dia, tínhamos de ir fazer o check-out do Albergue e depositar as nossas mochilas, das quais não tínhamos muitas saudades depois de tantos quilómetros com elas às costas, num sistema local de cacifos seguros. Depois de mais dois quilómetros andados e da nossa bagagem estar segura, foi tempo de cumprirmos o objetivo central da peregrinação: a visita à Catedral e ao túmulo do Apóstolo. Entrámos na Catedral por uma porta lateral e ficámos deslumbrados pelo quase milenar templo medieval com o seu esplendoroso, luminoso e altamente trabalhado altar. É inevitável ser-se arrebatado pela energia do local que nos esmaga pela sua história, importância e beleza. Visitámos o túmulo do Apóstolo e cumprimos o tradicional abraço à figura de Santiago que se encontra no altar. Após este momento de visita foi tempo de mais profunda contemplação e oração tendo participado na missa destinada aos peregrinos, pelas 12h. Este foi um bonito momento em que diversos Padres de diferentes origens celebraram a Eucaristia em conjunto para e com uma plateia também ela internacional de centenas de peregrinos de múltiplas nacionalidades.

Terminada a missa era tempo para um importante intento: recebermos o nosso amigo José Albano, na praça da Catedral. Pelas nossas contas e pela comunicação do próprio das horas a que tinha passado A Escravitude, prevíamos a sua chegada para perto das 13h. Fomos então colocar-nos nas arcadas junto à praça, a tentar avistar a sua capa da chuva verde florescente. Neste momento tivemos mais um bonito momento para mais tarde recordar, uma Associação de pequenos agricultores e produtores de Huelva estavam a oferecer centenas de caixas individuais de morangos aos peregrinos, fomos também contemplados com uns saborosíssimos morangos grandes, vermelhos e doces.

De boca adoçada recebemos a mensagem do nosso companheiro de que já tinha chegado e que devido à chuva tinha apressadamente ido à Oficina do Peregrino tratar da sua Compostela. Fomos imediatamente ter com ele. À chegada demos-lhe um grande abraço de congratulação e amizade pelo seu percurso também completado. Trocámos impressões sobre os últimos quilómetros do caminho e o que tínhamos achado mais difícil e desafiante.

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Eram 13h30 e já tínhamos alguma fome; enquanto o Albano foi instalar-se e tomar um banho ao seu Albergue ficámos incumbidos da missão de encontrar um local para almoçarmos os três. A escolha foi a Casa do Manolo, restaurante onde um de nós tinha ido no seu primeiro caminho há sete anos. A fila já era grande pelo que tivemos de esperar mais de meia hora por mesa, fizemos de pronto amizade com três senhoras espanholas de alguma idade que tinham, também, completado o seu caminho, sendo uma de mobilidade reduzida o carro de apoio das duas restantes. Orgulhosas Catalãs, partilhámos com elas as nossas idas ao seu “país” e elas connosco as suas idas a Portugal, onde já tinham visitado Óbidos que explicámos ficar próximo de Peniche. Enquanto esperávamos deu-se mais um momento mágico, repentinamente ouvimos um hello, era a nossa amiga Kate que tinha reconhecido os nossos chapéus e ia também ali almoçar, perguntamos prontamente se estava sozinha ao que respondeu afirmativamente. Uma mesa para três é o mesmo que para quatro, juntando-se também a nós para almoçar.

Tivemos um almoço tradicional galego polvilhado pela troca de experiências e conhecimento sobre os mais variados temas, a Kate partilhou os vários caminhos que já tinha feito e o Albano a história e significado do termo bica para o café; nunca mais beberemos café da mesma forma, especialmente Nespresso. Este dia e dias, este convívio entre 4 pessoas que não se conheciam há 6 dias tal e qual como se fossem amigos de longa data, com diferentes origens, idades, profissões, tudo isto é um dos milagres operados pelo caminho e do que de mais precioso levamos no nosso coração como recordação e resumo destes dias. Terminado o almoço despedimo-nos das nossas amigas Catalãs que estavam na mesa por detrás de nós e da nossa companheira de viagem Kate a quem desejámos bom regresso a casa. Um de nós tinha nova entrevista de trabalho em menos de uma hora e tínhamos que ir procurar um local sossegado para o fazer, o nosso amigo Albano providencialmente cedeu o seu quarto no albergue, deixámos aqui o nosso profundo agradecimento pelo gesto que permitiu que a mesma fosse bem sucedida e ocorresse com serenidade e sem ruído exterior.

A meteorologia tinha piorado ainda mais e as rajadas de vento e chuva tinham-se tornado permanentes, após a entrevista ter sido realizada com sucesso fomos com o Albano a uma lavandaria self-service e, na ausência de condições para podemos passear pela cidade, ficámos em agradável convívio até às 18h, hora em que tínhamos de ir buscar as mochilas e seguir para o terminal rodoviário. Falámos de um interesse em comum, a genealogia, trocámos conhecimentos, curiosidades e projetos para investigar no futuro. Discutimos ainda os desafios do mercado de trabalho atual. Por fim chegou a nossa hora limite e tivemos de nos despedir do nosso amigo com a certeza de que manteríamos contacto e que nos haveríamos de reencontrar. Depois de um grande abraço seguimos viagem, apanhámos as nossas mochilas e seguimos por 2km até ao terminal internacional de Santiago de Compostela onde uma viagem de 1h30 nos levaria a Vigo para no dia seguinte arrancarmos para casa.

Terminou assim mais um dia memorável em que a magia do caminho nos tocou de forma surpreendente, com reencontros previstos e outros imprevistos, uma profunda experiência espiritual, uma agradável refeição galega e tanto, mas tanto, para recordar e guardar com carinho no coração. Este não será ainda o nosso último artigo uma vez que tal como fizemos num que antecedeu o início da peregrinação queremos fazer outro com algum distanciamento, para refletir sobre o mesmo, e ainda outro dedicado às pessoas que conhecemos nestes dias. Resta-nos agradecer profundamente a Deus pela experiência única que nos providenciou e a todas as pessoas que cruzaram o nosso caminho, com quem aprendemos, partilhámos, sofremos, rimos e acima de tudo caminhámos.

Até um Dia, Santiago de Compostela!  

“O mais importante é o amor

Se eu for capaz de falar todas as línguas dos homens e dos anjos e não tiver amor, as minhas palavras são como o badalar de um sino ou o barulho de um chocalho. Se eu tiver o dom de declarar a palavra de Deus, de conhecer os seus mistérios e souber tudo; e se eu tiver uma fé capaz de transportar montanhas e não tiver amor, não valho nada. Ainda que eu dê em esmolas tudo o que é meu, se me deixar queimar vivo e não tiver amor, de nada me serve. O amor é paciente e prestável. Não é invejoso. Não se envaidece nem é orgulhoso. O amor não tem maus modos nem é egoísta. Não se irrita nem pensa mal. O amor não se alegra com uma injustiça causada a alguém, mas alegra-se com a verdade. O amor suporta tudo, acredita sempre, espera sempre e sofre com paciência. O amor é eterno. As profecias desaparecem; as línguas acabam-se; o conhecimento passa.”

(2 Cor 13, 1-8)

André Silva e Manuel Coutinho

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