Ecologia literária

flamacabeçalho

david mfDavid de Jesus Mourão-Ferreira (1927-1996), professor universitário, escritor e poeta de elevados méritos, distinguiu-se a diversos níveis de intervenção cívica e cultural.

Notável articulista, dedicou-se por igual ao jornalismo, tendo dirigido A Capital e co-dirigido O Dia.

Foi secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Escritores e desempenhou o cargo de secretário de Estado da Cultura em 1976, 77 e 79. Ocupou também um lugar de sócio correspondente na Academia Brasileira de Letras.

Co-fundador da revista Távola Redonda, escreveu contos, novelas e romances, sendo no entanto como inspirado poeta que mais se distinguiu. Escreveu letras de fados que Amália popularizou, entre os quais se conta o célebre poema Abandono (que ficou conhecido como Fado Peniche, pela sua evidente conotação política), sendo no entanto Barco Negro o mais divulgado.

Galardoado com prémios literários e distinções honoríficas, distribuiu o seu génio por diversas rubricas culturais, para além da poesia e da pura literatura, pois foi crítico, ensaísta, dramaturgo, tradutor, conferencista e polemista.

Tendo ingressado em 1981 nos quadros da Fundação Calouste Gulbenkian, aí dirigiu o Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas, o seu Boletim Cultural e a revista Colóquio/Letras.

David Mourão-Ferreira, que muito apreciava Régio e a sua obra, conviveu intimamente com este durante o desempenho do serviço militar obrigatório em Portalegre, nos anos 50, um pouco antes de Eugénio Lisboa, a quem aconteceria o mesmo. Desse convívio resultaria o reforço de uma recíproca amizade que levou David Mourão-Ferreira a mais tarde centrar sobre o autor da Toada uma série de actividades locais, regionais e nacionais de evocação e homenagem, alargadas a outras personalidades da Presença.

Senhor de uma rara e rica sensibilidade, impossível se torna aqui abordar ainda que sumariamente uma biografia mínima do professor, escritor e poeta. Acrescentando mais um simples pormenor a episódios já neste blog evocados (e certamente a evocar!), revela-se hoje um curioso artigo, curioso sobretudo pela insuspeita temática, subscrito por  David Mourão-Ferreira na revista Flama.

Datado de 11 de Maio de 1973, há quarenta anos atrás, dispõe do título Os Devotos da Poluição e dele não pretendo desvendar ou antecipar seja o que for, remetendo cada interessado para o prazer de ler este ligeiro (!?) ensaio ecológico (!?)…

Pérola ignorada saída da pena dum homem superior, encaixa na perfeição no conceito de que sou cada vez mais crente, o de que qualquer banal tema, desde que tratado por um autêntico pensador, pode ganhar estatutos de invulgaridade.

 

António Martinó de Azevedo Coutinho

david mourão-ferreira 1 11.5.73

David e José – III

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David Mourão-Ferreira e José Régio  (III)

David Mourão-Ferreira confessou ter procurado conhecer José Régio como nunca lhe acontecera nem voltaria a acontecer quanto a qualquer outro autor que admirou em vida. E revelou ter passado a escrito as suas impressões desse encontro, numa espécie de diário íntimo, que tencionava publicar. Mas nunca o publicou, embora até tivesse antecipado o seu eventual título: “Os íntimos degraus“…

Porém, felizmente, não ficámos privados desse fundamental conhecimento.

JL – jornal de letras, artes e ideias, publicação que José Carlos de Vasconcelos teima em manter, remando contra ventos e marés, sobretudo contra indiferenças, tem sido um farol que ilumina caminhos por vezes mergulhados em trevas, como tem sido o campo da nossa cultura. Trinta e dois anos depois, mais de mil números depois, ele continua a perseguir hoje objectivos da primeira hora. Mas devemos reconhecer que foram pioneiros, heróicos e mais interessantes os seus primeiros tempos.

E foi aí, precisamente no número 25 do Ano 1 (2 a 15 de Fevereiro de 1982), numa das muitas rubricas dedicadas pelo jornal a David Mourão-Ferreira, que encontrei a esmeralda perdida, qual paráfrase de inesquecível filme de aventuras.

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O Prazer da Escrita é o título genérico dum belo trabalho de Afonso Praça, referência jornalística nacional (1939-2001), onde David foi entrevistado, revelando na ocasião duas obras inéditas: o poema Talvez, de 1981, e páginas de “Os íntimos degraus” (diário inédito de 1947-1953). Ora este excerto descreve, precisamente, o histórico encontro com José Régio.

Reproduzimo-lo a seguir, transcrito daquela publicação, procurando, se tecnicamente no blog for possível, manter os bolds do texto original.

A modéstia intelectual do jovem David, sinal inequívoco da sua disponibilidade, apresenta-se aqui no comportamento de alguém que se sente perante um mestre. E Régio, que disfarçava numa tímida indiferença comportamental pública a sua natural afabilidade, soube entendê-lo, prestando-lhe cuidada e sincera atenção. E falou da Presença, por dentro. Felizmente, exagerou na “secagem” da sua fonte poética interior, logo em 1947…

A Chaga do Lado (1954), Filho do Homem (1961) e Cântico Suspenso (1968) são o melhor desmentido desta “auto-profecia”, para não falar das obras póstumas, igualmente poéticas, Música Ligeira e Colheita da Tarde

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Com respeito e homenagem para com José Carlos de Vasconcelos, retirado do seu JL – jornal de letras, artes e ideias n.º 25 do ano I, de 2 a 15 de Fevereiro de 1982, eis o relato do primeiro encontro entre David Mourão-Ferreira e José Régio, acontecido a 22 de Novembro de 1947, pelas seis e meia da tarde na pastelaria Smarta, em Lisboa. Era um sábado…

22 de Novembro (1947), 5 e meia da tarde, Pastelaria Smarta. — Ontem, depois de almoço, soube pelo Tomaz Ribas que o José Ré­gio está em Lisboa, instalado no Hotel Metró­pole (“Até terça-feira. Vem assistir à estreia da Benilde…“). E, hoje de manhã, enchi-me de coragem e telefonei para o Hotel. Conversa telefónica de que mal me recordo. Sentia-me aflito, sem saber como apresentar-me. Mas, enfim, combinou vir aqui ter às seis e meia. Cheguei com uma hora de avanço.

24 de Novembro, 11 da manhã, Café Chave d’Ouro. — Sábado, na Smarta, depois de tomado o apontamento anterior, peguei num livro decidido a tentar ler. Mas os meus olhos só espiavam a porta e, em cada pessoa que entrava, julgavam sempre encontrar, ao primeiro relance, semelhanças com José Régio. Até que ele finalmente apareceu. Vinha acompanhado por um rapaz dos seus vinte e poucos anos (seu irmão mais novo segundo depois me disse), de quem, contudo, logo a se­guir se despediu. Eu, mal o vira, tinha-me erguido e apresentei-me. Sentámo-nos. Uma in­descritível consciência de que estava ali com um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos perturbava-me e impedia-me de ar­ticular duas ideias, de construir uma frase. Lá consegui vencer essa infantil perturbação e co­mecei por lhe pedir desculpa da minha audá­cia em lhe ter telefonado e em lhe ter pedido um encontro a sós com ele – audácia de que eu próprio me espantava, porquanto há qua­tro anos andava para lhe escrever uma carta, sem que, porém, jamais me decidisse.

– Há quatro anos? – admirou-se ele, sorrindo.

Expliquei-lhe o que a leitura dos Poemas de Deus e do Diabo tinha sido para mim: fundamental.

– Isso prova que você ainda é muito novo. Felizmente para si.

Contei-lhe depois que já tinha tido oportu­nidade de lhe ser apresentado por dois amigos (inútil dizer nomes…), mas que a não aceita­ra, pois, não sabendo qual a opinião que Régio tinha a respeito deles, não desejava eu fi­car implicitamente dentro do mesmo concei­to.

– Decerto que não tenho má opinião… Não sei, não sei de quem se trata, mas… certamente que não tenho má ideia deles, claro.

– Bem… Não se trata de ideia… Sim­plesmente, são ambos de tendências neo-realistas…

– Cada qual…

– Pois sim: mas eu é que não sou!

O Régio sorriu e começou a fazer um cigar­ro:

– Sabe? Eu não ataco os neo-realistas… Acho que eles são necessários. A história literária é feita disso mesmo: desses choques, dessas diferentes maneiras de ver as coisas. E a verdade é que todas as novas gerações reagem contra as antecedentes. Nós próprios, a Presença, que fizemos senão reagir contra o que estava? É certo que o fizemos sem hostili­dade…

Lembrei-lhe um artigo dele, Régio, publi­cado num dos primeiros números da Presen­ça, acerca do romance português, em que a Aquilino e a Teixeira-Gomes se não negava o que lhes era devido.

– Pois… Aliás, nós, na Presença, nunca fomos daquela estreiteza que hoje para aí se diz. Hoje, tornou-se moda dizer que a Presen­ça foi subjectiva. Ora a verdade é que havia lá subjectivistas e objectivistas. Se havia uns to­dos metidos para dentro, também havia outros voltados para o exterior: o Alberto de Ser­pa, o Saul Dias…

– Creio que a lição da Presença foi a de in­citar cada um a seguir o seu caminho.

– Evidentemente. Olhe, às vezes, apare­ciam lá na Presença poemas e contos que os seus autores supunham “feitos à maneira da Presença“. É claro: não os publicávamos. O que se pretendia era que cada qual fizesse coi­sas “à sua maneira”. Isto trazia logo o problema do individualismo em arte. Sim, lá isso é exacto: éramos individualistas em arte. Mas poderão atacar-nos por isso? Continuo hoje a acreditar que toda a verdadeira arte é de cria­ção puramente individual. Não há arte colec­tiva: há simplesmente arte que pode reflectir problemas colectivos.

Eu olhava para ele e dificilmente conseguia fazer coincidir com aquele homenzinho pequeno, de olhos brilhantes e piscos, de lábio inferior muito carnudo e excessivamente alon­gado, o poeta das Encruzilhadas de Deus, o dramaturgo do Jacob e o Anjo.

– Sabe? Tinha imensas coisas para lhe di­zer, mas…

– Eu sei. Nos primeiros encontros nunca se diz nada. Nem de um lado nem doutro. Certos jovens que me escrevem perguntam-me às vezes; “Quando é que você aparece? Gosta vamos de o conhecer, falar consigo”, etc. E eu respondo-lhes invariavelmente: “Conhecer-me para quê? Conhecem a minha obra. Pronto. Um conhecimento pessoal só acrescenta algu­ma coisa depois de certo convívio.”

Voltámos depois a falar do neo-realismo e da animosidade dos seus críticos perante ele, Régio, e outros escritores presencistas. José Régio referiu-se, então, a uma crítica de António Ramos de Almeida recentemente saída na Vértice:

–  Aquilo é uma tareia completa! E esse é meu amigo. E conterrâneo. Conheço-o desde pequeno, desde os seus catorze anos. Talvez por isso mesmo, julga-se no direito de ser rigoroso. Mas, nesta crítica, creio que já não há só rigor… A única razão de queixa que tenho de muitos críticos novos é a sua falta de sim­patia. Por nada deste mundo desejaria eu que eles me apreciassem! Simplesmente, parece-me que uma obra sincera, feita com toda a sinceridade e – vamos lá! – não muito mal feita, merece ao menos isto: simpatia.

Disse-lhe eu depois que pensava escrever um ensaio sobre a sua obra poética. O Régio, então teve esta confidência:

–  Olhe, talvez vá sendo tempo. Porque eu… livros de poemas já não publico mais. A fonte secou.

E, como eu lhe falasse de poemas seus já aparecidos depois da publicação de Mas Deus é Grande (um na Brisa, outro no Instituto e outros, em prosa, no Mundo Literário), o José Régio acrescentou:

– Sim, sim… São contemporâneos de Mas Deus é Grande. Ou até anteriores… A fonte secou.

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David e José – II

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DAVID MOURÃO-FERREIRA E JOSÉ RÉGIO (II)

No dia 4 de Maio de 1990, foi lançado em Lisboa, na Livraria Barata, o número especial de A Cidade – Revista Cultural de Portalegre (4/5, nova série), integralmente dedicado aos 20 anos da morte do poeta José Régio e do pintor D’Assumpção, duas personalidades marcantes das letras e das artes ligadas à capital do Norte Alentejano.

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Estiveram presentes alguns dos colaboradores da publicação, infelizmente hoje suspensa (o último número é de 2008), entre os quais David Mourão-Ferreira e Rui Mário Gonçalves. Eugénio Lisboa (julgo que estaria em Moçambique) foi um dos raros ausentes.

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Seria aquela a derradeira ocasião em que eu privaria com David Mourão-Ferreira. Guardo dele a recordação de um homem superior e afável, sempre disponível para a partilha dos seus dons culturais, que possuía em elevado grau.

O artigo que então publicou na revista –Segunda evocação de José Régio em Portalegre– acrescenta alguns interessantes pormenores sobre o seu conhecimento, amizade e convívio com o poeta da Toada.

Daí transcrevo algumas significativas passagens:

Findava o mês de Novembro de 1947. Vésperas da estreia de Benilde ou a Virgem-Mãe. E o Régio encontrava-se instalado em pleno Rossio, no Hotel Metrópole. Então aconteceu-me o que nunca até aí me tinha acontecido, o que nunca depois viria a acontecer-me: procurar conhecer pessoalmente um escritor que muito admirava. Mas passo a transcrever, com todos os riscos do inerente ridículo, o que na tarde do dia 22 desse mês e desse ano, na pastelaria Smarta, febrilmente registei num juvenil diário íntimo que na altura mantinha: ‘… hoje de manhã, enchi-me de coragem e telefonei para o Hotel. Conversa telefónica de que mal me recordo. Sentia-me aflito, sem saber como apresentar-me. Mas, enfim, combinou vir aqui ter às seis e meia. Cheguei com uma hora de avanço.’

E só dois dias mais tarde -a 24, portanto- me senti razoavelmente recomposto da emoção daquele primeiro encontro, daquela primeira conversa, para tentar então resumi-la em quase uma dezena de páginas de caligrafia cerrada. Mas não vou aqui trasladá-las; sequer esboçar o resumo desse resumo.

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Portanto, não será por aqui que poderemos satisfazer a natural curiosidade de conhecer o que foi o conteúdo desse encontro. Mas continuemos a seguir David:

Mas essa minha impressão estava longe de por inteiro corresponder à complexa realidade do seu ser [de Régio] anímico, incessantemente varrido por íntimas contradições, voluntariamente ocultado pelos mais subtis mecanismos de defesa.

Disso mesmo tive sobejas provas ao longo dos cinco meses -de Março a Agosto de 1952- em que diariamente privei com ele aqui em Portalegre, para onde me tinham arrastado, como aspirante-miliciano, as irrevogáveis obrigações do meu serviço militar. Daí data efectivamente o auge do nosso convívio. Já por mais de uma vez aludi a essa experiência e, muito em particular, numa longa entrevista que me foi feita, em Abril de 1982, pela excelente revista A Cidade, que nesta cidade se publica. Não desejo pois repetir-me. Mas não posso deixar de rapidamente reevocar aqui o que tais cinco meses para mim significaram na companhia quotidiana de José Régio e do pequeno mas extraordinário grupo de seguros e provados amigos com que nessa altura ele aqui contava: Feliciano Falcão, Arsénio da Ressureição, Lauro Corado, Firmino Crespo, João Tavares, Adelino Santos. Rara a tarde ou a noite em que pelo menos com alguns deles nos não reuníssemos no Café Central. Mais raro ainda o fim de tarde que eu não passasse com Régio no seu pequeno gabinete de trabalho desta ‘casa velha’ -‘velha, grande, tosca e bela’- em que decorreram muito para cima de trinta anos da sua existência.

E dávamos grandes passeios aos domingos… Ora a pé, pelo interior da cidade e pelos seus mais próximos arredores, ora no automóvel de Senhor Adelino Santos, que desempenhava, na ocasião, as funções de secretário-geral do Governo Civil. E eram então improvisadas excursões até Marvão, Castelo de Vide, os Olhos de Água…”

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São rigorosas, para além do estilo e do seu natural interesse documental, estas memórias de David Mourão-Ferreira. Finalmente, fala do seu “sucessor” na tropa e no convívio regiano, em Portalegre: Eugénio Lisboa.

Sob este aspecto [namoradeiro!], não viria a ter José Régio melhor sorte com alguém que dois anos depois, e por idênticas razões mavórticas, junto dele aqui me viria ‘render’, mas que também alhures haveria de constituir o seu lar. Em compensação, sob todos os demais aspectos, Eugénio Lisboa -pois dele obviamente se trata- muito melhor do que eu representaria aquele papel de ‘filho espiritual’, a um tempo compreensivo e independente, atento e rebelde, com que Régio no fundo sempre sonhou. Pelas várias obras fundamentais que à obra e à vida de José Régio tem consagrado, Eugénio Lisboa tornou-se, desde há muito, com a agilidade da sua inteligência e os inesgotáveis recursos da sua cultura, o grande, o incomparável, o insuperável especialista da obra regiana que jamais eu poderia ter sido, que nunca sonhei sequer poder vir a ser.”

Dilatou-se portanto, em significativos pormenores, o nosso conhecimento do que foi a estimável relação entre David Mourão-Ferreira e José Régio.

Falta apenas conhecer algo mais sobre o que foi o primeiro encontro entre ambos…

António Martinó de Azevedo Coutinho

David e José – I

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DAVID MOURÃO-FERREIRA E JOSÉ RÉGIO (I)

Numa entrada do seu diário íntimo, relativa a 17 de Novembro de 1954, escreveu José Régio:

“- Apareceu este ano em Portalegre, como oficial miliciano, o aspirante Eugénio Lisboa, que é um dos rapazes mais inteligentes que em toda a minha vida tenho conhecido. Graças a ele tenho tido, no Café Central, conversas como julgo nunca tivera em Portalegre. Por que não me inspira ele, apesar de tudo, a simpatia que, por exemplo, desde logo me inspirou o David?…”

Recuemos uns anos. Numa outra entrada, esta referente a 20 de Dezembro de 1947, ele escrevera:

” … Antes de mais, – qual o sentimento que me ficou desta primeira experiência de ‘autor representado’? O de desgosto. Sem dúvida me souberam bem aqueles dias em Lisboa, para assistir aos ensaios. Instalei-me bem, num bom quarto sobre o Rossio (Hotel Metrópole). Gostei de conversar com alguns amigos; velhos amigos. E outros, novos, apareceram, – quase adolescentes – que me testemunharam a sua admiração com uma frescura, uma sinceridade, um tocante misto de timidez e ousadia, como só à extrema juventude pertence. Deus lhes pague o bem que me fizeram! Vale a pena ser poeta só para assim achar repercussão em almas ainda não corrompidas. Deus lhes pague, sim! Estes e outros amigos totalmente meus desconhecidos sustentaram a minha peça na noite de estreia, – lutando contra o esboço de pateada e os apartes impertinentes duma parte do público.”

Os dois trechos destas memórias de Régio estão intimamente ligados. Um dos jovens que lhe apareceram, em Lisboa, a quando do episódio da “acidentada” estreia da sua peça Benilde ou A Virgem Mãe (Novembro de 1947) foi precisamente o David, depois comparado com Eugénio Lisboa. David Mourão-Ferreira tinha então 20 anos, estudava ainda, era um debutante nas tarefas literárias e aquele foi um encontro decisivo na sua vida.

Em 1952, duas épocas antes de Eugénio Lisboa, seria também colocado como oficial miliciano em Portalegre, aí reencontrando o seu amigo José Régio. Deste período de convívio há abundantes testemunhos, nomeadamente o que prestou aos “três mosqueteiros” (Aurélio Bentes, António Ventura e eu próprio) da revista portalegrense A Cidade, para o seu número quatro, em Abril de 1982. Dois anos depois, quando em Portalegre organizámos as comemorações Presença de José Régio, alusivas ao 15.º aniversário da morte deste, novamente David Mourão-Ferreira nos honrou com a sua qualificada amizade e simpatia, nomeadamente através duma conferência e da colaboração no número especial de A Cidade (Outubro de 1984), hoje considerado como uma referência regiana incontornável. Diga-se, por ser justo e oportuno, que idêntica disponibilidade encontrámos da parte de Eugénio Lisboa.

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Acrescente-se ainda, sobre as relações entre este e Régio, que a evolução das tensões iniciais progressivamente produziria o seu total desanuviamento. Eis as provas, pelos testemunhos constantes do mesmo diário:

Portalegre, 15 de Janeiro de 1955:

“… Já me vou entendendo muito melhor com o Eugénio Lisboa. Já, algumas vezes, conversamos com inteiro à-vontade. Mas… sobretudo quando discutimos, de repente, um embaraço aparece entre nós, fitamo-nos à força… Creio ser eu o principal culpado desta espécie de inibição: Qualquer coisa, na minha cara ou no meu tom, embora subtilmente, revelou a minha falta de naturalidade interior – a que logo ele reage ficando também menos à vontade. Claro que também nele há uma falta de naturalidade interior, – sem o que nem a minha se manifestaria, nem, a manifestar-se, chegaria ele a dar por ela. É curioso que se me não dão tais fenómenos (e creio que só a minha literatura lhes faz, por vezes, alusão, ainda insuficiente…) senão com pessoas que sinto, em certos pontos, muito minhas afins.”

Portalegre, 5 de Março de 1955:

“… Durante a primeira parte da minha doença (ainda se não sabia de que se tratava) fui muito visitado pelos aspirantes, que me fizeram excelente companhia. O constrangimento que ainda pudesse haver entre mim e o Lisboa fundiu-se então por completo. Ele chegou a ter para comigo cuidados filiais. Estou sentindo profundamente a sua ausência, -pois todos foram embora há uns dias. Mais este vazio, e mais esta melancolia das simpatias interrompidas… sabe Deus até quando!

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É possível rever, em pormenor, o que foi o primeiro encontro entre David Mourão-Ferreira e José Régio, acontecido pelas seis e meia da tarde de um sábado, dia 22 de Novembro de 1947, a uma mesa da Pastelaria Smarta, na Rua Rodrigues Sampaio, em Lisboa.

É disso que trataremos em próxima oportunidade.

 António Martinó de Azevedo Coutinho