XI – … e Portalegre?
No dia da inauguração do Museu da Tapeçarias de Portalegre – Guy Fino, a 14 de Julho de 2001, o presidente da República, Jorge Sampaio, lembrou a sua memória no discurso proferido a propósito:
“Foi nesta cidade, de Portalegre, que nasceu a Tapeçaria portuguesa moderna, graças ao talento, à sensibilidade e ao aturado labor de Manuel do Carmo Peixeiro, o criador da Tapeçaria portalegrense e do seu ponto original, valendo-se de um grande espírito inventivo e dos profundos conhecimentos técnicos que adquiriu ao longo das sua vida. Nos anos 40, Manuel do Carmo Peixeiro aliou a sua criatividade e conhecimentos à iniciativa de Guy Fino que foi nas palavras tão justas de Manuel Peixeiro, ‘a alma da expansão e prestígio da nova Manufactura de Arte’. Estes homens souberam interessar e associar ao que queriam fazer numerosos artistas portugueses e estrangeiros, da mais alta qualidade, que entre as suas obras passaram a contar com admiráveis cartões para tapeçaria.”
Porém, a presença de Manuel Peixeiro neste belo espaço museológico em pouco ultrapassa o meramente simbólico, com uma única foto de fraca qualidade e uma discreta, quase “envergonhada”, referência…
Um dos mais modernos testemunhos sobre Portalegre, as melhores tapeçarias do mundo, encontramo-lo na obra Os Anos de Salazar (volume 10, Planeta DeAgostini, 2008), no artigo com aquela designação, assinado por João Marques Lopes. Depois de evocar a tranquila vida cultural portalegrense da época, sob a égide da tertúlia de José Régio, pelos inícios dos anos 50 do passado século, o articulista descreve o reconhecimento público do mérito da tapeçaria ali criada. E escreve:
“A aposta de Manuel do Carmo Peixeiro nas possibilidades artísticas do ‘ponto de Portalegre’, que, ao contrário do internacionalmente reconhecido ‘ponto francès’, não deixava qualquer efeito de ‘escadinha’ e permitia assim uma maior precisão no acabamento do desenho transposto do cartão, parecia não estar a surtir grande resultado. (…) O industrial Guy Fino teve a ousadia de montar uma pequena mostra paralela e de convidar os técnicos e os artistas franceses a visitá-la a fim de compararem a qualidade plástica das tapeçarias francesas com a de Portalegre. (…) Daqui ao reconhecimento internacional foi um enorme impulso, só devidamente consagrado mais para o fim da década de 50, quando o conhecido artista francês Jean Lurçat se tornou no grande difusor da tapeçaria portalegrense. A aposta de Manuel do Carmo Peixeiro começava, portanto, a ser ganha. Embora ele já não fosse, em 1952, o grande motor do projecto, pois esse papel cabia agora ao seu filho Manuel Celestino Peixeiro e a Guy Fino, era a ele que se devia a invenção do ‘ponto de Portalegre’ e a ideia inicial de cruzar arte e indústria através da manufactura de tapeçarias.”
Em finais de 2010, por um fútil pretexto, gerou-se um dispensável conflito entre as famílias Fino e Peixeiro. O jornal Margem Sul Online levou a cabo uma votação destinada a eleger sete maravilhas alentejanas, com o declarado objectivo de divulgar a região alentejana. Entre as eleitas encontrou-se a Tapeçaria de Portalegre.
Esta quase anónima iniciativa, hoje completamente ignorada -se é que alguma vez teve qualquer significado-, terá proporcionado uma alusão pública ao nome de Guy Fino, anexado ao do Museu, e relegado para um total desprezo o nome de Manuel Peixeiro. O facto desencadeou uma reacção por parte de familiares deste, sentindo a sua memória injustiçada, nomeadamente através duma carta aberta dirigida ao presidente da autarquia portalegrense. A direcção da Manufactura de Tapeçarias respondeu, fazendo sentir que a polémica desencadeada era claramente prejudicial, tornando-se susceptível de ofender a credibilidade e o prestígio da instituição, bem como a honra e consideração dos seus proprietários. Felizmente, tudo passou, mas terá deixado certas cicatrizes…
Um recente folheto intitulado Nós na arte – tapeçaria de Portalegre e arte contemporânea assinala uma série de exposições organizadas pelos Museus da Presidência da República e da Tapeçaria de Portalegre – Guy Fino. É inegável o seu bom gosto e a sua qualidade gráfica. O seu texto de apresentação inicia-se por dois parágrafos que se transcrevem:
“Herdeira da tradição francesa e belga de tapeçaria mural, a Tapeçaria de Portalegre é considerada a melhor tapeçaria mural do mundo.
Fundada em 1946, por Guy Fino e Celestino Peixeiro, a Manufactura de Portalegre representou um ponto de viragem na história da tapeçaria mural. Adotou uma nova técnica de tecelagem, conhecida como o ponto de Portalegre e associou a sua produção a grandes nomes da arte contemporânea nacional e internacional.”
Quero acreditar que apenas uma distracção, não intencional, terá aqui escamoteado a justa e obrigatória referência a Manuel do Carmo Peixeiro. A não ter assim acontecido, estaríamos perante um acto de abominável censura, no melhor estilo da ficção que George Orwell tão bem descreveu em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Em boa verdade, a História não se apaga nem as suas páginas podem ser grosseiramente estropiadas. A verdade sobrevive, sempre.
Manuel do Carmo Peixeiro, covilhanense de nascimento e portalegrense por opção, marcou a nossa cidade pelo contributo, incontornável, que lhe prestou. De facto, quando se liga o nome de Portalegre à sua mais qualificada embaixatriz cultural e artística -as nossas Tapeçarias-, o seu nome deve ser sempre associado a este justo motivo de orgulho e qualidade. E de diferença.
Guy Fino, João Tavares e Manuel Peixeiro constituem uma trindade invulgar. E indissolúvel. José Régio assumiu-se como um autêntico cronista, quase oficial, da gesta tapeceira e dos seus protagonistas.
Porém, se de entre a trindade tapeceira alguém perguntar pelo elemento fundamental, quase me apetece responder de forma panfletária: Pai da Tapeçaria Portuguesa só há um, Manuel do Carmo Peixeiro e mais nenhum!
Como comunidade à qual Manuel do Carmo Peixeiro deu o melhor da si próprio, seremos capazes de entender o exemplar comportamento que Oeiras, a tal propósito, nos revelou?
Portalegre nunca foi capaz de acarinhar José Régio durante toda a sua longa permanência entre nós. Atreveu-se mesmo a vandalizar, oficialmente, a memória de José Duro. Como poderemos esperar que recorde e louve, na dimensão devida, esse Homem invulgar que foi Manuel do Carmo Peixeiro?
António Martinó de Azevedo Coutinho